O que leva alguém gostar de
esportes outdoor? Ou o que leva
algumas pessoas a se enfiarem em precárias barracas de lona durante madrugadas
congelantes para, no dia seguinte, acordar cedo e encarar horas de tremendo esforço
físico no alto de montanhas em que o risco de morte é real? Ou, em termos mais
diretos, o que nos leva a trocar um final de semana no conforto de nossas casas
ou num boteco por esses perrengues, nos expondo a riscos e gastando energia à
toa? Sempre me pergunto isso quando estou saindo de casa rumo a uma trilha ou
corrida de aventura.
No último final de semana, quando
fomos para o Parque Nacional do Itatiaia, não foi diferente. Uma hora e meia de
trânsito só pra sair de São Paulo e chegar na Ayrton Senna; mais quatro horas
de estrada e, por fim, após estacionarmos na margem de uma estradinha de terra,
uma hora e meia de caminhada por uma trilha estreita (e, em alguns trechos, em
meio a brejo) na gélida madrugada da Mantiqueira e levando nas costas 10 quilos
de equipamentos para chegarmos no Refúgio Agulhas Negras, nosso destino e onde
montaríamos as barracas pra, no dia seguinte, às 7h da manhã, cairmos da cama
para percorrer de volta toda a trilha e, na sequência, entrarmos no parque para
subirmos rumo ao pico das agulhas negras.
Para entrar no parque do Itatiaia
e atingir o pico de suas três principais montanhas (Agulhas Nergras, 2.790
metros; Morro do Couto, 2.680 metros, e Pico das Prateleiras 2.548 metros), é
preciso, antes, preencher um documento com nomes e documentos dos integrantes
do grupo que vai para a trilha e o horário de início da caminhada; no caso do
Agulhas, o documento deixa bem claro que, se, até às 17 horas, o grupo não
retornar, uma equipe de busca e resgate será acionada. Ou seja: embora
conquistar esse cume seja considerado algo relativamente simples pelos mais
experientes, não se trata, definitivamente, de um passeio no parque.
Documentação ok, passamos a portaria
e iniciamos o percurso rumo às Agulhas. A trilha, em si, envolve três seções. A
primeira consiste numa caminhada básica de uns dois quilômetros pela estrada de
terra que corta o parque e dá acesso ao Abrigo Rebouças – um alojamento
comunitário, com camas, fogão e banheiro e único local da parte alta do Parque
em que é permitido acampar. Passado o abrigo, tem início o segundo trecho.
Aqui, o caminho se transforma num single
trek, uma trilha estreita e cercada por arbustos, mas ainda praticamente toda
no plano. Aqui se atravessa, sobre pedras, uma pequena represa e um riacho de
águas muito limpas e geladas, último ponto em que é possível abastecer os
cantis – a água é totalmente potável. Por fim, chega-se ao terceiro trecho, o
realmente desafiador. Aqui, começa o que os trilheiros chamam de ‘escalaminhada’,
uma mistura de caminhada com algumas técnicas de escalada, que envolvem subir
em rochas enormes, passar sobre gretas (buracos entre essas pedras gigantes) e,
às vezes, superar paredes com o uso de cordas – mas sem equipamentos mais
específicos de escalada, como cadeirinhas e freios de rapel. Essas passagens
envolvem um pouco de força e algum grau de habilidade, mas são, em geral,
transpostas facilmente por gente sem experiência em escalada, mas com algum
preparo físico.
De qualquer forma, é aqui que os
novatos se espantam e, em geral, praguejam contra todas as gerações de quem os
levou até ali. Guias, amigos, marido, ninguém escapa. Diante do desafio de
transpor uma rocha enorme passando bem ao lado de um abismo cuja queda, dezenas
de metros abaixo, seria fatal, alguns xingam; outros vão em frente, as pernas e
braços trêmulos diante do medo. A maioria chora e grita “Daqui
eu não passo!”. Acreditem, já fui ao Itatiaia três vezes e testemunhei essa
cena em duas ocasiões – 66% das vezes, portanto. Mas, passada a crise, a
maioria vence os próprios instintos e segue montanha acima para, depois de mais
um sem número de promessas de nunca mais voltar, atingir o cume.
Chegar lá em cima, não importa quantas vezes já se tenha feito isso, é uma sensação única. Envolve sentimentos de conquista, de realização e de paz. No topo de uma montanha, o único som que se ouve é o do vento (bem forte, diga-se) e o que se enxerga é o horizonte, bem longe. No caso do Pico das Agulhas Negras, pode se avistar a via Dutra, o vale do Paraíba e, mais além, a Serra da Bocaina, que dá para o litoral de Paraty e Angra dos Reis. Do outro lado do pico, avista-se o Vale do Aiuruoca, no Sul de Minas Gerais. Vista de 360 graus.
No cume com a Renata
Ficamos mais ou menos meia hora no cume das Agulhas Negras (prá quem tem curiosidade, a área do pico é equivalente à de uma sala pequena). Comemos, tiramos fotos e nos divertimos com as histórias que sempre surgem durante a subida. Acima de tudo, contemplamos aquele visual espetacular. Depois, encaramos os mesmos desafios (mas mais confiantes) para fazer o caminho de volta e, às 09h da noite, chegarmos no abrigo, tomarmos um merecido banho gelado e uma cachaça tipicamente mineira e dormirmos em nossas quase congeladas barracas.
Vista do Pico das Agulhas Negras
Tenho consciência de que uma história como essa pode soar como a maior das aventuras pra quem não é do ramo, mas de que não se trata, absolutamente, de algo inédito ou digno de nota. O mundo está cheio de aventureiros de verdade, gente que encara desafios como subir o K2 (a montanha mais perigosa do mundo, onde corpos congelados dos escaladores mortos no caminho jazem, como testemunho de seus riscos), atravessar a Passagem de Drake (o mar entre Argentina e a Antártida, conhecido pelas piores condições climáticas do mundo) num caiaque ou cruzar o deserto do Saara numa bicicleta.
Tenho consciência, também, da
complexidade de se explicar a fascinação que esse tipo de atividade nos exerce.
Como diz John Krakauer no livro Sobre
homens e montanhas, o que leva alguém a
escalar montanhas é algo que a maioria das pessoas que não faz parte do mundo
dos montanhistas tem dificuldade para entender – se é que entende. Para
mim, são esses breves momentos de conquista, reflexão e paz que justificam nossos
pequenos-grandes perrengues.