quinta-feira, 25 de abril de 2013

Perrengues: por que gostamos deles?


O que leva alguém gostar de esportes outdoor? Ou o que leva algumas pessoas a se enfiarem em precárias barracas de lona durante madrugadas congelantes para, no dia seguinte, acordar cedo e encarar horas de tremendo esforço físico no alto de montanhas em que o risco de morte é real? Ou, em termos mais diretos, o que nos leva a trocar um final de semana no conforto de nossas casas ou num boteco por esses perrengues, nos expondo a riscos e gastando energia à toa? Sempre me pergunto isso quando estou saindo de casa rumo a uma trilha ou corrida de aventura.

No último final de semana, quando fomos para o Parque Nacional do Itatiaia, não foi diferente. Uma hora e meia de trânsito só pra sair de São Paulo e chegar na Ayrton Senna; mais quatro horas de estrada e, por fim, após estacionarmos na margem de uma estradinha de terra, uma hora e meia de caminhada por uma trilha estreita (e, em alguns trechos, em meio a brejo) na gélida madrugada da Mantiqueira e levando nas costas 10 quilos de equipamentos para chegarmos no Refúgio Agulhas Negras, nosso destino e onde montaríamos as barracas pra, no dia seguinte, às 7h da manhã, cairmos da cama para percorrer de volta toda a trilha e, na sequência, entrarmos no parque para subirmos rumo ao pico das agulhas negras.

Para entrar no parque do Itatiaia e atingir o pico de suas três principais montanhas (Agulhas Nergras, 2.790 metros; Morro do Couto, 2.680 metros, e Pico das Prateleiras 2.548 metros), é preciso, antes, preencher um documento com nomes e documentos dos integrantes do grupo que vai para a trilha e o horário de início da caminhada; no caso do Agulhas, o documento deixa bem claro que, se, até às 17 horas, o grupo não retornar, uma equipe de busca e resgate será acionada. Ou seja: embora conquistar esse cume seja considerado algo relativamente simples pelos mais experientes, não se trata, definitivamente, de um passeio no parque.



Placas avisando dos riscos de subir sem conhecer técnicas de escalada: não é um passeio no parque.

Documentação ok, passamos a portaria e iniciamos o percurso rumo às Agulhas. A trilha, em si, envolve três seções. A primeira consiste numa caminhada básica de uns dois quilômetros pela estrada de terra que corta o parque e dá acesso ao Abrigo Rebouças – um alojamento comunitário, com camas, fogão e banheiro e único local da parte alta do Parque em que é permitido acampar. Passado o abrigo, tem início o segundo trecho. Aqui, o caminho se transforma num single trek, uma trilha estreita e cercada por arbustos, mas ainda praticamente toda no plano. Aqui se atravessa, sobre pedras, uma pequena represa e um riacho de águas muito limpas e geladas, último ponto em que é possível abastecer os cantis – a água é totalmente potável. Por fim, chega-se ao terceiro trecho, o realmente desafiador. Aqui, começa o que os trilheiros chamam de ‘escalaminhada’, uma mistura de caminhada com algumas técnicas de escalada, que envolvem subir em rochas enormes, passar sobre gretas (buracos entre essas pedras gigantes) e, às vezes, superar paredes com o uso de cordas – mas sem equipamentos mais específicos de escalada, como cadeirinhas e freios de rapel. Essas passagens envolvem um pouco de força e algum grau de habilidade, mas são, em geral, transpostas facilmente por gente sem experiência em escalada, mas com algum preparo físico.

De qualquer forma, é aqui que os novatos se espantam e, em geral, praguejam contra todas as gerações de quem os levou até ali. Guias, amigos, marido, ninguém escapa. Diante do desafio de transpor uma rocha enorme passando bem ao lado de um abismo cuja queda, dezenas de metros abaixo, seria fatal, alguns xingam; outros vão em frente, as pernas e braços trêmulos diante do medo. A maioria chora e grita “Daqui eu não passo!”. Acreditem, já fui ao Itatiaia três vezes e testemunhei essa cena em duas ocasiões – 66% das vezes, portanto. Mas, passada a crise, a maioria vence os próprios instintos e segue montanha acima para, depois de mais um sem número de promessas de nunca mais voltar, atingir o cume.

Chegar lá em cima, não importa quantas vezes já se tenha feito isso, é uma sensação única. Envolve sentimentos de conquista, de realização e de paz. No topo de uma montanha, o único som que se ouve é o do vento (bem forte, diga-se) e o que se enxerga é o horizonte, bem longe. No caso do Pico das Agulhas Negras, pode se avistar a via Dutra, o vale do Paraíba e, mais além, a Serra da Bocaina, que dá para o litoral de Paraty e Angra dos Reis. Do outro lado do pico, avista-se o Vale do Aiuruoca, no Sul de Minas Gerais. Vista de 360 graus.



No cume com a Renata

Ficamos mais ou menos meia hora no cume das Agulhas Negras (prá quem tem curiosidade, a área do pico é equivalente à de uma sala pequena). Comemos, tiramos fotos e nos divertimos com as histórias que sempre surgem durante a subida. Acima de tudo, contemplamos aquele visual espetacular. Depois, encaramos os mesmos desafios (mas mais confiantes) para fazer o caminho de volta e, às 09h da noite, chegarmos no abrigo, tomarmos um merecido banho gelado e uma cachaça tipicamente mineira e dormirmos em nossas quase congeladas barracas.


















Vista do Pico das Agulhas Negras

Tenho consciência de que uma história como essa pode soar como a maior das aventuras pra quem não é do ramo, mas de que não se trata, absolutamente, de algo inédito ou digno de nota. O mundo está cheio de aventureiros de verdade, gente que encara desafios como subir o K2 (a montanha mais perigosa do mundo, onde corpos congelados dos escaladores mortos no caminho jazem, como testemunho de seus riscos), atravessar a Passagem de Drake (o mar entre Argentina e a Antártida, conhecido pelas piores condições climáticas do mundo) num caiaque ou cruzar o deserto do Saara numa bicicleta.

Tenho consciência, também, da complexidade de se explicar a fascinação que esse tipo de atividade nos exerce. Como diz John Krakauer no livro Sobre homens e montanhas, o que leva alguém a escalar montanhas é algo que a maioria das pessoas que não faz parte do mundo dos montanhistas tem dificuldade para entender – se é que entende. Para mim, são esses breves momentos de conquista, reflexão e paz que justificam nossos pequenos-grandes perrengues.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Boston, 15 de abril


 A maratona de Boston não é uma prova qualquer. Pra começo de conversa, é uma das mais antigas do mundo. Tem 117 anos – pra efeito de comparação, a nossa tradicionalíssima São Silvestre tem 88. Além do mais, não é, literalmente, pra qualquer um. Para estar lá, é preciso ter um tempo mínimo classificatório - diferentemente de outras maratonas célebres, como Nova York, Paris e Berlim. Para os homens de 18 a 24 anos, por exemplo, esse tempo é hoje de três horas e cinco minutos. Quem tem familiaridade com o mundo das corridas sabe que correr uma maratona em menos de quatro horas não é trivial (tanto que existe a expressão ‘fazer uma maratona sub 4’), quanto mais em três. Por isso, o mundo das corridas olha pra essa prova com um carinho especial.

Por esses e por outros tantos motivos, os atentados ocorridos na última segunda-feira chocam. Eles acertaram em cheio um esporte carregado de simbologia. A corrida é, por definição, a modalidade mais democrática que existe; por mais que sejam alardeadas as qualidades de tênis que são a última palavra em amortecimento ou de cronômetros high tech supercaros, o que vale mesmo é a dedicação. Um par de tênis simples e uma boa dose de força de vontade são o suficiente pra botar o pé na estrada. E nisso, a corrida iguala a todos. Que outro esporte faria campeões atletas vindos de do chamado ‘Chifre da África’ (como Etiópia e Eritreia), a região mais miserável do mundo? 

A maratona também fascina porque tem em seu DNA a superação. Sua origem, diz a lenda, foi a jornada do soldado grego Filípides (ou Fidípides), que correu os 40 quilômetros entre as cidades de Maratona e Atenas para noticiar a vitória dos helenos sobre os persas. Ao concluir a jornada, anunciou: “vencemos” e morreu, extenuado pelo cansaço. Imaginem as condições de correr 40 quilômetros 2.500 anos atrás. Desde então, o termo maratona passou a integrar toda expressão que envolva uma quantidade absurda de coisas pra fazer: “Assistir uma maratona de jogos”, “encarar uma maratona de reuniões”, e por aí vai. E pense na quantidade de filmes, livros e até videoclipes carregados de clichês já produzidos sobre corridas e suas histórias de superação.

Por fim, correr é um ato de celebração. Celebrar a perda de uns quilos, o abandono do hábito de fumar ou, simplesmente, celebrar o momento, sem um motivo especialmente importante que não o de estar no meio de uma multidão de 10, 20 mil pessoas de diferentes idades, classes, religiões – como se isso, aliás, não fosse, por si, um motivo para celebrar. A São Silvestre é especialmente representativa do ato de celebração: paulistas, cariocas, nordestinos, caipiras, gays, roqueiros, são paulinos, corinthianos e quenianos, todo mundo junto numa vibração positiva por mais um ano que começa.

E nesse quesito os americanos são insuperáveis. Nova York, Chicago e...Boston, fazem de suas maratonas grandes celebrações. Mas eles também são insuperáveis quando se trata de juntar todo mundo na tragédia, meter a mão na massa e dar a volta por cima. No ano passado, quando o furacão Sandy provocou o cancelamento da maratona de Nova York, centenas de corredores nada resignados foram ao Central Park, local da chegada, e correram os 42 quilômetros correspondentes à distância da prova. De quebra, doaram agasalhos e alimentos às vítimas da tempestade. É essa força de reação que, tenho certeza, eles mostrarão agora.