domingo, 26 de agosto de 2007

Route-Movie

A Garden Route poderia, digamos assim, ser considerada o cenario perfeito para um road movie - um filme daqueles em que a historia se passa na estrada, ao longo centenas ou milhares de quilometros, seja a bordo de um onibus, de um carro, ou, melhor ainda, de uma moto, como em Easy Rider, o principal classico desse genero.

Ao longo de seus 1.600 quilometros, entre Cape Town e Durban (ou 800 quilometros, entre Cape Town e Port Elizabeth), se
alternam praias, montanhas, canions, cidadezinhas historicas e planicies a perder de vista nas quais as pastagens e as plantacoes de todos os tipos produzem, para o viajante, uma infinidade de tons de cores, especialmente no final da tarde.

Falando um pouco do estilo Road Movie, como cinefilo meia-boca que sou, confesso que nunca assisti Easy Rider. Minhas referencias no genero estao mais para Sideways e Diarios de Motocicleta.

Em Sideways, dois ex-colegas de faculdade passam uma semana juntos viajando num conversivel pela regiao produtora de vinhos da Califiornia. Miles, recem separado e enofilo, busca esquecer a ex-mulher. Jack, o ex-ator bonitao e fracassado, esta prestes a se casar e busca aproveitar o tempo que resta como solteiro conquistando garotas.

Diarios de Motocicleta conta a historia da viagem que o jovem Ernesto Che Guevara fez pela America Latina a bordo de uma moto antes de se tornar guerrilheiro, revolucionario e icone da cultura pop.

A estrada, nos dois casos, e personagem central. As montanhas, as planicies, os hoteis, as retas interminaveis, tudo isso da sentido a historia. E nesses cenarios que os personagem discutem, vivem seus affairs ou apenas celebram a vida.

Foi justamente com esse espirito, o de celebrar a vida, que pegamos a Garden Route numa sexta-feira ensolarada do inverno de Cape Town, coisa rara nesta epoca do ano.

A bordo de uma van, seis amigos que haviam se conhecido ha menos de um mes e que, de fato, dificilmente terao oportunidade de se reunir novamente - tres caras italianos, um alemao, um brasileiro e uma garota espanhola. No volante, o belga Bart, um tiozao com cara de roqueiro que ha mais ou menos dez anos veio para a Africa do Sul para passar ferias. Gostou tanto que resolveu ficar por aqui.

Como bom amante de rock'n roll, Bart caprichou na trilha sonora. Entre U2, Marvin Gaye e uma serie de bandas e estilos entre o soul e o ska, percorremos os cerca de 300 quilometros entre Cape Town e Albertinia, mais ou menos na metade da Garden Route.

Rodamos, as vezes, por estradas vicinais, em trechos que lembram a rodovia Rio-Santos - dada a quantidade de curvas em que o mar e as montanhas se encontram -, as vezes pela N2, uma das mais importantes estradas da Africa do Sul, que, no inicio, sobe por montanhas de cerca de mil metros, entre plantacoes de uva destinadas a producao de vinho e, depois, adentra pelo interior do pais em infindaveis planicies nas quais se espalham pastagens e plantacoes de trigo e canola, que produzem figuras geometricas em diversos tons de verde e de amarelo.

A parte as paradas para abastecimento, para fumar (proibido dentro da van), para pernoite e para lanches de diversos tipos, foram, ao todo, cinco paradas:

(1) Bettys Bay - uma das maiores colonias de pinguins da Africa do Sul (acreditem, esses bichinhos engracadinhos sao muito mais bonitos nas fotografias; as colonias fedem coco de pinguim);

(2) Vinicola Idiom, em Hermanus - oferece uma degustacao de cerca de 10 vinhos, produzidos na regiao;

(3) Hermanus - O principal ponto de observacao de baleias da Africa do Sul. Durante o inverno, dezenas de turistas se aglomeram na praca central no inicio da manha e no final da tarde para observar as baleias. A cidade possui alguns bares e cafes que merecem uma parada. Um, digamos assim, conceito de cidade de praia com o qual nos, brasileiros, estamos pouco acostumados; o mar esta ali, mas mais como cenario. Como o clima e extremamente frio, as pessoas preferem se divertir nos cafes a ir na praia;

(3) Swellendan - A terceira cidade mais antiga da Africa do Sul, fundada em 1745 por holandeses;

(4) Garden Route Game Lodge - Em Albertinia, perto de Mossel Bay. Trata se de uma fazenda transformada em area de preservacao. Comuns no pais, essas fazendas acabam se transformando em mini-safaris onde os animais (como bufalos, rinocerontes e elefantes) fazem a alegria dos turistas que nao se dispoem a bancar os altos custos de um safari de verdade nos parques nacionais. Dispoe de quartos bem confortaveis com excelente vista para as montanhas - peco desculpa aos meus dois leitores e meio por copiar descaradamente boa parte deste paragrafo de outro post;

(5) Bungee Jump Gourits River Bridge - um bungee jump de 65 metros numa ponte, cercado por um cenario espetacular - tudo bem, nao e o maior do mundo, mas nao fica devendo muito.

Percorremos os cerca de 600 quilometros (ida e volta) entre Cape Town e Albertinia em dois dias e meio. Entre uma boa trilha sonora, bons vinhos e um belo cenario, o que vale e nao viver como um passageiro da propria vida.

sábado, 25 de agosto de 2007

Uma historia africana - mas bem brasileira

A história do angolano João Assaca, 48 anos, se parece com a de muitos joões brasileiros. Assim como os outros, ele foi obrigado deixar a região onde vivia para tentar a vida em outro canto. Foi parar na periferia de uma grande cidade, onde luta para, com um salário de cerca de R$ 600 por mês, sustentar a mulher e os oito filhos.

João veio para a África do Sul há nove anos, refugiado da guerra civil angolana - uma guerra que durou 26 anos, afetou 4 milhões de pessoas e só terminou em 2002. Em seu país, abandonou o posto de policial militar. Fugiu como desertor. "Pegar em armas para matar gente do meu próprio país? Me recusei." Nessas circunstancias, se voltar para Angola, Joao sera preso.

Para entrar na Africa do Sul, atravessou o rio Orange, o maior da África do Sul, na fronteira com a Namíbia numa canoa, levando quatro dos oito filhos. Os outros ficaram com a mulher, em Angola. Vieram depois.

Filho de mãe congolesa e pai angolano, João viveu no Congo até os 21 anos. Depois, mudou-se para Angola, de onde fugiu definitivamente aos 39. "Passei minha infância no Congo e a idade adulta em Angola. Agora, estou começando minha velhice aqui na África do Sul."

Da infância no Congo, herdou o domínio do francês. Fala, também português - Angola é um dos 10 países que tem o português como língua oficial - e inglês.

Desde que se mudou para o país, João já trabalhou em diversos locais, sempre como segurança. Atualmente, é vigia da Universidade de Stellenbosch, uma cidade conhecida na Africa do Sul por produzir bons vinhos e por possuir elevado padrão de vida.

Com os cerca de US$ 300 que recebe por mês, comprou um barraco em Guguletu, uma township - townships são a versão sul africana das nossas favelas - na periferia da Cidade do Cabo. Para ir para o trabalho, se espreme diariamente com outras centenas de trabalhadores num dos trens metropolitanos que percorrem, a cada mais ou menos uma hora, os 50 quilômetros entre Stellenbosch e a Cidade do Cabo - como os trens são lentos, o percurso é realizado em cerca de uma hora."Às vezes, quando o dinheiro está curto, tomo só um trem na volta e faco o restante do percurso a pé."

Em Guguletu, João convive com outros milhares de refugiados. Gente vinda, como ele, de Angola, e de outros países africanos que vivem à beira do colapso, governados por ditadores ou sob permanente estado de guerra civil - apenas o caótico vizinho Zimbabue, que vive sob uma inflação de cerca de 900% ao mês, já 'exportou' para a Africa do Sul cerca de 3 milhões de pessoas, segundo a ONU. João reclama de que, assim como os outros, sofre preconceito dos sul africanos, na township. "Embora sejamos todos negros, eles reconhecem as pessoas vindas de outro pais".

Foi justamente num trem, numa tarde ensolarada de sábado, que conheci seu João, enquanto voltava de minha visita a Stellenbosch.

Durante os cerca de quarenta minutos em que conversamos, ele me contou detalhes de seu passado e de seu presente. Numa estacao proxima a Cape Town, se despediu. Se encontraria com a filha mais velha, que trabalha numa loja para, juntos, voltarem para casa. Abriu um enorme sorriso quando falou da possibilidade de a filha entrar na faculdade. Assim como muitos dos joões brasileiros, o João angolano insiste em acreditar na vida.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Leoes enlatados

A expressao que da titulo a este post, 'leoes enlatados', pode parecer, a primeira vista, exagerada e estranha para quem nunca ouviu falar nesta modalidade de caca.

O termo vem da expressao 'canned hunt', em ingles 'caca enlatada', que, nos Estados Unidos, serve pra designar algumas areas particulares nas quais a caca e liberada. Por mais estupida e absurda que seja, essa pratica e permitida por lei em alguns estados americanos.

Como, em geral, os animais ficam em grandes fazendas, o termo mais correto talvez fosse algo como 'farmed hunt' ("caca 'enfazendada'") ou, na pior das hipoteses, 'caged hunt' ('caca enjaulada').

Mas considerando-se as circunstancias com que e praticada aqui na Africa do Sul, talvez a expressao mais correta seja mesmo 'caca enlatada'.

Ate junho deste ano, a 'canned hunt' era permitida por lei em areas particulares, nos mesmos molde do que ocorre nos Estados Unidos.

Zebras, gnus, impalas, nada escapava dos rifles dos cacadores. Segundo o jornal New York Times, na temporada de caca 2003-04, nada menos que 54 mil animais foram abatidos.

Mas o grande trofeu eram, claro, os felinos, em especial, os leoes. Pode ate parecer estranho que, em pleno seculo 21, alguem ainda sinta prazer em apertar o gatilho de um rifle de alta precisao, capaz de perfurar um veiculo, sobre um coitado de um leao. O fato e que, na temporada 2003-04, cerca de 190 debiloides pagaram aproximadamente US$ 15 mil para ter esse, se e que se possa chamar assim, 'prazer'.

E obvio que, nessas circunstancias, com armas de alto poder de destruicao, alta precisao e com guias bem treinados para identificar os esconderijos, as melhores formas de posicionar a arma na hora do tiro, etc., os leoes nao tinham a minima chance.

A questao e que, para facilitar a vida dos cacadores, eram frequentes os casos de abusos no tratamento dos animais. Um documento do governo britanico de 1997, intitulado 'The Cooke Report', relata situacoes em que os leoes eram sedados para serem abatidos mais facilmente.

Mesmo com a pratica banida, ha relatos de que, longe da fiscalizacao do governo, leoes ainda sao criados desde pequenos para virar trofeu. Mantidos em espacos minusculos, recebem diariamente grande quantidade de alimento para ganhar peso. Chegam a pesar, quando adultos, 250 quilos - ante 150 quilos de leoes que crescam na natureza, sem, digamos assim, terem sido criados pra morrer.

Foram relatos desse tipo que ouvi dos guias do Garden Route Game Lodge, uma fazenda transformada em area de preservacao. Comuns no pais, essas fazendas acabam se transformando em mini-safaris onde os animais (como bufalos, rinocerontes e elefantes) fazem a alegria dos turistas que nao se dispoem a bancar os altos custos de um safari de verdade nos parques nacionais.

Segundo os guias, depois de apreendidos pela fiscalizacao governamental, muitos dos leoes acabam sendo doados para Organizacoes Nao Governamentais (ONGs), que, por sua vez, nao tem como bancar os altos custos de alimentacao e alojamento e acabam repassando os felinos para fazendas como o Garden Route.

La, ganham o direito de viver em areas maiores e reapredem a cacar por conta propria. Da mesma forma que ocorre com gatos criados em apartamento que, de uma hora para outra, tem de acompanhar os donos na mudanca para uma casa e, la, aprender como e a vida sobre um telhado, cacando pardais, esses leoes tem de descobrir, sozinhos, as melhores estrategias para cacar um antilope e garantir o almoco - embora, na maioria do tempo, a alimentacao seja garantida pela fazenda.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Terra de Poliglotas (II) - Publicado em 21/08

Imagine se, no Brasil, falassemos ingles. Mais: imagine se, alem do ingles, falassemos um portugues completamente diferente do falado em portugal (uma nova lingua que poderia ser batizada, mesmo, de 'brasileiro'). E, completando a lista, tupi-guarani, tupinamba e uma infinidade de outras linguas originadas dos nossos indios. Imaginou? Pois bem, e exatamente esse o cenario das linguistico da Africa do Sul.

Oficialmente, segundo a constituicao do pais, se falam, por aqui, nada menos que 11 idiomas: ingles, afrikaans, southern Ndebele, northern sotho, sotho, swati, tsonga, tswana, venda, zulu e Xhosa - que se fala produzindo um estalo da lingua no ceu da boca, num som dificil de pronunciar.

Me informa a Wikipedia que, segundo o Censo Nacional de 2001, as quatro linguas mais faladas no pais sao, pela ordem, zulu (24% da populacao), Xhosa (18%), afrikaans (13%).

O ingles e apenas a sexta linguagem mais falada. Essa estatistica, entretanto, nao deve intimidar eventuais interessados em conhecer o pais. E em ingles que sao anunciados os precos dos produtos nos supermercados, os precos da gasolina nos postos de combustivel e as tarifas de telefones celulares. Em ingles estao, tambem, as sinalizacoes nas estradas, nos onibus e nos bancos. Jornais, revistas e livros? Quase tudo em ingles. Sites - inclusive os do governo? Tambem em ingles. E, claro, e e em ingles que os locutores das radios se comunicam, num estilo, alias, bem parecido com o dos locutores das FMs brasileiras - quem quiser conferir clique em http://www.goodhopefm.co.za/. E nos grandes centros urbanos funcionarios de orgaos publicos, estabelecimentos comerciais em geral e restaurantes falam ingles numa boa.

Um caso curioso, entre todas essas linguas e o do afrikaans. Simplificando bastante, trata-se de um holandes, modificado por mais ou menos quatrocentos anos de influencia das linguas dos nativos. A historia dessa lingua comecou no seculo 16, quando os holandeses da entao poderosa Companhia das Indias Ocidentais - que operava a rota das especiarias - se estabeleceram aqui em Cape Town (Cidade do Cabo). Ate o seculo 19, o afrikaans era considerado um dialeto do holandes mas, em 1925, foi reconhecido como lingua. Ainda assim, mais ou menos 85% das palavras em afrikaans sao parecidas com as equivalentes em holandes.

Aqui vai uma pequena lista de palavras em afrikaans (com a comparacao com holandes), pescada da Wikipedia:

Afrikaans - lughawe
Holandes - luchthavenvliegveld
Portugues - aeroporto

Afrikaans - winter
Holandes - winter
Portugues - inverno

Afrikaans - lemoen
Holandes - sinaasappel
Portugues - laranja

Por conta da influencia dos holandeses aqui na regiao de Cape Town (provincia de Western Cape), o afrikaans e primeira lingua de 58% da populacao. E por isso, mesmo, a maioria das placas, por exemplo, embora esteja em ingles, tem, logo abaixo, a traducao pro afrikaans.

Entre a populacao em geral, no dia-dia, o afrikaans e o ingles disputam espaco com as linguas dos nativos (Xhosa, Zulu, etc). Experimente puxar conversa com um vendedor ambulante ou com o cobrador de uma das inumeras lotacoes que circulam por aqui, por exemplo. O vocabulario, na pratica, e uma mistura de todos esses idiomas. Se nao conseguir se comunicar, nao se desespere. Entregue o dinheiro (R 4 para uma passagem de lotacao, mais ou menos R$ 1,5), pronuncie o lugar pra onde quer ir e fique tranquilo. De uma forma ou de outra, mesmo nessa aparente confusao, a comunicacao funcionara.

Mais links de radios e jornais da Cidade do Cabo:

http://www.goodhopefm.co.za/

http://www.kfm.co.za/

http://www.capetimes.co.za/

http://www.capeargus.co.za/

Cabo da Boa Esperanca

Eu sou aquele oculto e grande cabo. A quem chamais vós outros Tormentório. (Os Lusiadas, Luis de Camoes)

O Cabo da Boa Esperanca e o ponto mais ao sul do continente africano. Fica mais ou menos no ponto em que se encontram o oceano Atlantico e o Indico - digo mais ou menos porque o ponto exato e o Cape Agulhas, mais ou menos 150 quilometros a leste.

Para os portugueses e, de certa forma, para nos, brasileiros, o Cabo da Boa Esperanca possui uma enorme dose de simbolismo e uma dose ainda maior de importancia historica. Sua travessia foi considerado na epoca um feito tao importante que se tornou parte de Os Lusiadas, de Camoes.

Em 1847, Bartolomeu Dias cruzou o Cabo em busca de uma rota que permitisse aos portugueses chegar as indias, dando inicio a exploracao do comercio de especiarias India-Portugal. Encontrou, ali um mar violento, tempestuoso, que batizou de Cabo das Tormentas. Seguiu contornando a costa da Africa, mas, alguns dias depois, decidiu voltar para Portugal.

Em consequencia das excelentes perspectivas proporcionadas pelo feito - que signficava, digamos assim, 'dobrar a esquina da Africa', vislumbrando, as Indias logo ali na frente - o rei d. Joao II rebatizou a regiao com o nome de Cabo da Boa Esperanca, que prevalece ate hoje e que, vertido pro ingles, 'Cape of Good Hope', perde boa parte do seu sentido de conquistas e grandes aventuras que transmite em portugues.

Do ponto de vista geografico, o Cabo da Boa Esperanca consiste numa enorme peninsula composta por um paredao de rochas de uns 200 metros de altura que se desce vertical e abruptamente para o mar. La embaixo, ondas enormes se chocam contra as pedras, produindo um barulho fortissimo.

Visitamos o Cabo da Boa Esperanca dia 08 de agosto. Naquela tarde, um vento forte e gelado castigava a regiao. No horizonte, a oeste, o ceu, marcado por diversos tons de cinza, se tornava mais escuro, com nuvens enormes enormes e sinais de tempestade em varios pontos do oceano.

Fico imaginando se, naqueles dias, ha mais de 500 anos, Bartolomeu Dias enfrentou um tempo assim. Mais admiravel e imaginar como, com os recursos tecnologicos da epoca, conquistaram tal feito.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Terra de poliglotas

Criado em 1993 num predio que, imagino, tenha sido um casarao de meados do seculo 20 no bairro de classe media alta de Green Point, o Cape Comunication Center (CCC) abriga algumas dezenas de alunos - teenagers, em sua grande maioria - que diariamente tem aulas de ingles em suas 30 salas. Gente de todos os canto do mundo: turcos, sauditas, italianos, espanhois, coreanos, franceses, russos, angolanos e, claro, brasileiros.

Quando estao entre seus pares (gente da mesma origem), em geral adotam a lingua nativa. Os italianos, por exemplo, sao facilmente identificaveis: falam alto, gesticulam, riem. Cazzo, caspita, vaffanculo. Pensam em mulheres o tempo todo. Falam a respeito de mulheres o tempo todo. Bebem vinho e cerveja com o mesmo impeto com que devoram pratos de macarrao, lasanha e outros itens do cardapio menos associaveis a seu estereotipo, como hamburger e todos os tipos de carnes. Tem, em geral, um comportamento parecidos com o de nos, brasileiros. Os franceses, mais reservados, dificilmente interagem com outras tribos. Circulam pela escola em grupos de tres ou quatro conversando em tom de voz bem comedido.

Ja os coreanos sao um caso a parte. Vem, normalmente, pra ficar alguns meses - as vezes, mais de um ano. Mesmo depois dos 25 anos se comportam como adolescentes: bebem, fumam, ouvem rap de gangsters americanos, abusam do visual e das atitudes rebeldes. Passam por uma especie de estagio de ocidentalizacao. Sao, digamos, personagens de uma versao orientalizada de filmes como Porky's e Curtindo a Vida Adoidado, que imortalizaram o comportamento dos teenagers e universitarios americanos (e que, convenhamos, se repete entre os adolescentes pelo mundo afora).

Quando essas tribos sao obrigadas a interagir - ou quando sao obrigadas a se comunicar com as pecas isoladas desse quebra cabeca cultural, como este escriba, nas aulas, por exemplo - apelam invariavelmente para o ingles. E o ingles nesse caso, acaba se tornando uma especie de impressao-digital linguistica

Os italianos carregam na pronuncia dos 'eles'. Quando querem se referir a pessoas ('people'), pronunciam, por exemplo, o que, transformado em texto, seria 'pipoelll' - o ele sai carregado, bem parecido com a nossa pronuncia. Muito diferente da pronuncia dos americanos, algo mais proximo de 'pipou'.

Ja os alemaes possuem um ingles bastante inteligivel. O ritmo com que pronunciam as palavras, entretanto, tem muito do jeito, digamos assim, quadrado com que falam e das palavras 'secas' e cheias de consoantes de sua lingua. O ritmo e cortado e as vezes salpicados de palavras longas do alemao.

Os espanhois, por sua vez, falam um ingles acelerado, aparentemente consequencia da forma agil como se comunicam. Tem dificuldade de pronunciar o erre e o 've'. Cases, por exemplo, (casos), pronunciado pelos espanhois - ou pelos que conheci, pelo menos, sai caisses. O 'a' sai bem aberto, semelhante ao nosso 'a' e o esse, que, nesse caso, teria som de ve (em ingles americano, a pronuncia seria algo como queizes). Nunca assisti uma entrevista do piloto Fernando Alonso ou do tenista Rafael Nadal em ingles (lingua em que certamente sao obrigado a conversar com os jornalistas), mas imagino que nao seja dificil identificar essas caracteristicas em sua fala.

Mas o caso mais interessante - pelo menos dos que pude acompanhar - e o dos coreanos. Tome-se como exemplo o de meu roomate (colega de quarto), Kim Bae Son. Nosso nivel de interacao, na primeira semana de convivencia, se limitava a dois 'Hey', um de manha, quando eu e ele tinhamos de acordar pra ir pra aula e outro a noite, quando, em geral, ele chegava mais tarde e acendia as luzes do quarto, obrigando-me a virar para o lado oposto a direcao na qual ele vinha e a pronunciar um pouco mais que um rosnado - algo que, na cabeca dele, em coreano, deveria soar como 'Boa noite, amigo'. Qualquer tentativa de comunicacao que proporcionasse um pouco mais de informacao a respeito dele pra mim - e a meu respeito pra ele - sempre emperrou em alguma palavra que na boca dele me parecia impronunciavel.

Mas, depois de uma semana, com a ajuda de um caderninho, no qual anotava seu, digamos assim, vocabulario, e de muita mimica, conseguimos chegar num nivel de interacao que, numa escala de zero a dez, equivalia a mais ou menos quatro. 'Mopurendo', por exemplo, significava 'My friend' (meu amigo). 'Dipurer' equivalia a 'diferent'. E 'cerupono' equivalia a 'cell phone' (o celular dele), que, no primeiro dia aqui, tocou as cinco e meia da manha, transformando minha primeira aula de ingles no exterior numa luta ingloria contra o sono.

Bae vai, daqui a dois dias, pra passar uma temporada em Durban (outra cidade litoranea aqui da AS). se as coisas nao mudarem, devera ser substituido por outro coreano. Vem ai, mais uma temporada de mimica e caderninho de anotacoes.

sábado, 11 de agosto de 2007

Mundo (s) em ingles

Nesse mundo globalizado, o ingles e artigo de primeira necessidade. Nos aeroportos, seja em Guarulhos, Cingapura ou Johannesburgo, antes de entrar no aviao, as pessoas fazem check in. Toda sexta-feira as empresas promovem o casual day e, nos eventos, nao tem quem nao participe de um coffee break (o 'prato principal', digamos, assim, pode ser um brasileirissimo pao de queijo, mas nao deixa de ser um coffee break). Aqui na Africa do Sul, dezenas de italianos, franceses e coreanos transitam pelas ruas das cidades, cada um falando ingles de um jeito - os sotaques sao os mais variados, mas isso e assunto pra outro post -, mas todos falando, claro, ingles.

O curioso, no entanto, e que o estilo de vida - e, mais do que isso, as marcas predominantes - estao tao comuns que o ingles, nessas circunstancias, deixa de ser artigo de primeira necessidade. Se torna quase acessorio.

Pois vejam: sai de um aeroporto, em Guarulhos, desci em outro em Johannesburgo (AS) e tudo, com excessao de um gigantesco telao anunciando a copa do mundo de 2010 aqui na AS (e do caos no aeroporto de Guarulhos, que nenhum pais ainda conseguiu copiar, pelo que eu saiba) era igual.

A farmacia e clara, asseptica, em geral com o chao bem limpinho, e oferece, nas gondolas, creme anti rugas Nivea, pasta de dente da Colgate e xampu Wella. Tudo bem, voce pode ate nao entender se o shampoo e pra cabelos secos, anticaspa ou protege contra os efeitos dos raios UV porque o rotulo esta em ingles, mas reconhece perfeitamente que se trata de um xampu. Os fast foods (falar do ultraglobalizado Mc' Donalds e cliche) oferecem frango, batatas fritas, coca cola e cerveja.

Ah, as cervejas. Essas sao um capitulo a parte. Esqueca os destilados; se voce quiser saber qual a bebida tipica de um determinado pais, basta perguntar pra qualquer garcon qual e a marca de cerveja mais vendida. Nos EUA, por exemplo, Muller e Bud. No Japao, Saporo (esqueca o saque). No Mexico, as favas com a tequila. As bebidas nacionais sao Sol e Tecate. E, aqui na AS, a bebida nacional e conhecida como Castle. Vendida em garrafas long neck, nao fica devendo nada pra nossa Skol - e custa R 9, o equivalente a R$ 3,00, ate o preco e globalizado.

Pois bem, voltando ao aeroporto. Ou, melhor, saindo do aeroporto se pega uma avenida na qual circulam Volkswagens (Golf, Polo e, nesse caso, Chico, uma versao popular do Golf), Fiats (Palio) e GMs (Corsa) e Ford (Fiesta). Temos tambem Toytotas, Hondas e Renaults.

No supermercado, pra que saber ingles? Basta entrar e ir diretamente a uma das gondolas. Estao la o pacote de sabao Omo, a garrafa de Coca Cola, o pacote de salgadinho Elma Chips. As frutas, verduras e legumes, nao sao monopolio de nenhuma supercorporacao, mas cenouras, batatas e pimentoes sao artigo comum em qualquer secao de hortifruti. No caixa, basta pagar com seu Mastercard, Visa ou American Express. O supermercado (aqui chamado 'pick and pay', ou pegue pague) pode ficar na AS ou nos EUA, mas seu banco, de la da sede na Cidade de Deus, no Jabaquara, ou na Eusebio Matoso, resolve a parada.

Marcas 'made in Brazil'? Va a uma loja de esportes. Pelo menos aqui, do outro lado do Atlantico, Ronaldo Fenomeno e Ronaldinho estampam enormes outdoors e ajudam a vender camisetas e chuteiras da Nike. Ainda bem que ainda nao aprendemos a exportar E o Tchan e afins.

Amanha tem mais.

DV

Apartheid

Meio pretencioso de minha parte decifrar o apartheid em uma semana de AS, mas ficam, aqui, algumas impressoes e um pouco de historia.

Oficialmente, o apartheid (o regime politico que estabelecia, legalmente, a separacao entre brancos, negros e mulatos - aqui chamados de coloured) terminou em 1994, quando o ex-preso politico e lider da resistencia negra Nelson Mandela foi eleito presidente.

As marcas do apartheid, no entanto, ainda estao por toda parte em Cape Town. E impossivel andar pela cidade e nao se deparar o tempo todo com referencias, implicitas ou implicitas, ao regime. A cidade possui, por exemplo, um museu dedicado exclusivamente a historia da escravidao. O Slave Lodge (em ingles algo como 'residencia dos escravos' fica num edificio construido no seculo 17, que durante muito tempo serviu como deposito de escravos.

Curiosidade: diferentemente do que se possa imaginar no Brasil, os escravos aqui, na AS, em geral, nao eram negros africanos, mas asiaticos, trazidos pela holandesa Companhia das Indias Ocidentais pra servir como mao de obra de apoio pras atividades de suprimento dos navios que por aqui passavam na rota das especiarias Asia-Europa - Cape Town, por ficar no ponto mais ao sul do continente africano, se prestava bem ao papel de base de apoio pra essa rota.

O museu mostra nao apenas a escravidao, mas a discriminacao e nao apenas na AS, mas no mundo inteiro. Ha, ali, muito da historia do racismo nos Estados, por exemplo - uma das historia e a de Rosa Parks, uma negra que, em 1955, foi a justica para protestar contra as leis do estado do Alabama que proibiam negros e brancos de sentarem lado a lado nos onibus. A decisao, favoravel a Rosa, abriu caminho para uma serie de outras e impulsionou o movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King - mostrado em varias fotos no museu. E tambem bastante material sobre a Ku Klux Klan (KKK).

Voltando ao apartheid. Fica aqui em Cape Town a Ilha Robben (Robben Island), uma ilha que funcionou como prisao de seguranca maxima, especie de Alcatraz sul africana. De 1961 a 1991, Robben Island foi o destino dos presos politicos da AS. Foi em Robben Island que Nelson Mandela ficou preso durante vinte e poucos anos antes de se tornar presidente.

Desativada como prisao, a ilha se tornou destino turistico, um retrato bem visivel do que foi o regime (em breve, postarei fotos). No porto de onde partem as balsas a cada 30 minutos, um museu mostra, em fotos, recortes de jornais e pecas da epoca, toda a historia do regime, do inicio - oficialmente, na decada de 1960 - ate o final, como ja foi dito, em 1994.

As marcas do apartheid, no entanto, podem ser vistas tambem no dia-dia, de maneira menos formal. Embora a separacao entre negros e brancos ja tenha terminado oficialmente a mais de uma decada, ainda e dificil encontrar, por aqui (pelo menos pelo que eu tenha visto em uma semana), negros que ocupem posicoes de destaque. Na St George Street, uma especie de Wall Street de Cape Town, nao se veem, por exemplo, negros engravatados, como em New York ou em SP. Eles estao la, sim, mas, em geral, varrendo o chao, vendendo quinquilharias ou trabalhando como atendentes nas dezenas de padarias e restaurantes finos (excelentes, por sinal) que se pode encontrar na regiao.

Nessas circunstancias, me chamou a atencao a cena aqui acima: criancas negras e brancas brincando juntas numa escola - mais interessante, uma escola de classe alta, como se deduz pelos uniformes. Se o passado foi de separacao, quem sabe o futuro seja, um pouco mais, de integracao.

Em breve, voltarei ao tema. DV

Alguns links:

Museus

http://www.iziko.org.za/slavelodge/c_ex.html

Movimento pelos direitos civis nos EUA
http://en.wikipedia.org/wiki/American_Civil_Rights_Movement_(1955-1968)

Robben Island
http://www.robben-island.org.za/