sábado, 22 de setembro de 2007

Dia Mundial sem carro - Primeira Etapa

Peço desculpas aos meus quase dois leitores pelo longo período de ausência. Escrever demanda tempo, paciência e uma considerável dose de vontade de compartilhar com as pessoas sentimentos, idéias e experiências. Idéias, experiências e principalmente sentimentos - de amor e de ódio - nunca me faltaram. Tempo e paciência, esses, sim, andaram em falta.

Mas, passado esse período cinzento - outros ainda virão, entendam...-, tô de volta. Pra falar sobre o tal 'Dia Mundial sem Carro'. Só pra situar, essa efeméride foi criada nos anos 1970 na Europa, durante a crise do petróleo. Na década de 90, os dias sem carro ('carfree days', em inglês) se tornaram mais e mais populares. Surgiram ONGs especializadas em tratar da questão e, em 1999, foi estabelecido o Dia Internacional sem Carro - quem quiser saber mais dessa história, o site é http://www.worldcarfree.net/ .

No Brasil, o carfree day foi realizado pela primeira vez em 2001. Atualmente, é adotado em mais de 100 municípios, com destaque, claro, para as capitais, onde o trânsito é um dos maiores problemas.

Os números mais recentes da Fundação Seade dão conta de que, em 2002, havia na cidade de São Paulo 5,5 milhões de veículos - o equivalente a 24% de toda a frota nacional. Considerando-se que o crescimento de 3% ao ano no período de 1998 a 2002 se manteve nos anos seguintes, o número de carros na cidade seria de mais ou menos 5,7 milhões. A malha viária, pelo que informa o site da Prefeitura, é de 15,5 mil quilômetros e, até onde sabemos, não tem recebido grandes investimentos em amplição. O próprio prefeito Gilberto Kassab declarou que há um déficit de 110 quilômetros de vias. Temos, enfim, cada vez mais carros numa estrutura de ruas e avenidas que praticamente não cresce. O resultado todo mundo conhece.

Foi justamente por causa desse enorme caos em que se transformou o trânsito de São Paulo que o Dia Mundial sem Carro chamou tanto a atenção. Nos rádios, TVs e jornais, o assunto ganhou visibilidade. A questão é: a população adotou pra valer essa idéia? Pra conferir se isso, de fato, ocorreu e pra dar minha parcela de contribuição, resolvi fazer um 'test-bike', em duas etapas.

Sábado, 22 de setembro, o dia mundial sem carro. Primeira etapa. Trajeto de quatro quilômetros.

Primeira constatação: o dia mundial sem carro não foi, assim, sem carro. Partindo da rua Arthur de Azevedo, em Pinheiros, viro à esquerda na rua Pedroso de Moraes, onde, puxando pela memória, me lembro de que havia uma bicicletaria - uma portinha acanhada e cuja sujeira escura produzida pela borracha dos pneus e pela graxa mais fazia lembrar uma borracharia, mas mais que suficiente para calibrar meus pneus. "Dia mundial sem carro? O senhor tá brincando. Pra falar a verdade, o movimento hoje tá igual ao dos outros sábados. O pessoal, pelo jeito, não se empolgou muito com a idéia de trocar o carro pela bicicleta", me informa o simpático dono da loja.

Seguindo em frente, ainda pela Pedroso, vou em direção à avenida Rebouças, uma das mais importantes de São Paulo. O movimento me confirma a informação do vendedor. O número de carros me parece igual ao de outros sábados - coisa que, aliás, os jornais também constatariam; a manchete da Folha de S. Paulo, por exemplo, no dia seguinte, era: "Trânsito e poluição marcam o Dia Mundial Sem Carro em SP".

No semáforo da Pedroso que dá para a Rebouças, sigo, como as motos, pela trilha que se abre no meio das filas de carros que esperam pelo sinal verde. Num Honda Fit prateado, uma garota de óculos escuros me olha feio através dos vidros fechados. Vira o rosto. Uma mulher de cabelos cacheados ao lado, ao volante - provavelmente a mãe -, buzina, preocupada com o perigo de que eu risque seu veículo. O sinal abre. Sigo, ainda no meio dos carros.

Busco um pouco de segurança pedalando o mais próximo possível do meio fio, como recomendam os especialistas em 'ciclismo urbano'. Mas um, dois, três ônibus enormes passam muito próximos de mim, quase me derrubando. Os carros, menores, preferem buzinar, da mesma forma que a tia do Honda Fit havia feito minutos antes. Me lembro instantaneamente do que a Renata Falzoni - fundadora do grupo Nightbikers e maior especialista no assunto - havia dito em entrevista na Rádio CBN um dia antes: "Se você quer começar a pedalar no trânsito de São Paulo, esqueça as regras e vá pela calçada, respeitando os pedestres. Não é o mais correto, mas é o mais seguro". Constatação, aliás, que eu já havia tido três ou quatro anos atrás, quando, quando fazia diariamente o percurso entre meu apartamento, na Barra Funda, e o Estadão, onde trabalhava. Não dá pra esperar, mesmo, o respeito dos ônibus e, principalmente, dos carros. Sendo assim, decido deixar de correr riscos, andando pela rua, para causar riscos, pedalando pela calçada.

Dois quarteirões antes de onde a Rebouças se transforma na ponte Eusébio Matoso (que, por sua vez, dá para a avenida Francisco Morato), começo a ter uma noção mais clara do sacrifício diário a que os pedestres - com quem agora divido a uma estreita feixa entre a avenida e as garagens das casas - são submetidos todos os dias naquela região. A calçada, toda esburacada, exige habilidade pra escapar de pedaços de piso soltos, buracos e pequenas poças formada pela água usada para lavar a fachada das casas e postos de gasolina na região. Já as guias rebaixadas para deficientes estão em todas as esquinas. Só que, em muitos casos, nessas mesmas esquinas em que há as guias rebaixadas, não há um semáforo ou uma faixa que seja para permitir que o pedestre - ou, nesse caso, o ciclista - atravesse a rua em segurança.

Na ponte Eusébio Matoso, descubro que há, quase invisível aos olhos preocupados com o trânsito dos motoristas, uma área para a passagem de pedestres - estreita, acanhada, mas ali está, pra facilitar minha vida. Ainda na ponte, uma pausa para observar com um pouco mais de atenção o caldo escuro e fedorento (muito fedorento!) do Rio Pinheiros, coisa impossível de se fazer a bordo de um automóvel. Cruzo com pedestres e alguns ciclistas. Nada de cumprimentos. Apenas olhares de cumplicidade - o mesmo tipo de olhar de cumplicidade que trocam os vestibulandos, os maratonistas e os passageiros das companhias aéreas, nas intermináveis filas dos guichês e salas de embarque.

No final da ponte, outro obstáculo: os tubos de aço que servem como base de apoio para as enormes placas de sinalização - em geral, essas placas têm um metro e meio de comprimento por dois de largura - são instalados nas calçadas, dificultando a passagem de pedestres. Sigo por mais cinco quadras, pela avenida Valdemar Ferreira até o portão principal da USP. Estou a salvo. No dia sem carro, como em todos os outros, o trânsito de SP esteve um caos. Por causa dos carros.

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