segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Fogos do tempo

Dona Marinez acordou sobressaltada, o coração palpitando sob o pijama branco de flanela. Ainda sonolenta, levou algum tempo para cair em si e entender que as seguidas explosões lá fora eram, não um tiroteio, mas os fogos do baile do Havaí, no clube da cidade, duas quadras adiante. Abriu a janela e ficou alí, os olhos passeando por entre as coloridas formas geométricas que se formavam, aqui e alí, nos céus da cidade.

Trinta e poucos anos haviam se passado desde que ela, ainda adolescente, entrara, pela primeira vez, naquela festa. Naqueles anos, em que televisão era coisa rara nas casas da cidade e em que TV em cores era um luxo a que só o seu Barbosa, da então movimentada rua Alberto de Barros podia se dar; em que geladeira era da marca Prosdócimo e o mundo era dividido entre a Arena e o MDB, a Jovem Guarda e a MPB, os engajados e os alienados – o Baile do Havaí era uma efeméride. Um acontecimento, como a própria ‘inauguração’ da TV em cores de seu Barbosa, alguns anos antes, na Copa de 1970.

Tão importante que era, o Baile do Havai não comportava distinções entre ‘tribos’ - palavra, aliás, que, naquele tempo, era usada só mesmo pra se referir às etnias indígenas. Alienados e engajados, ou, nos termos de hoje, mauricinhos e alternativos, marcavam presença ali, todos juntos. Bebiam soda e cuba libre, submetiam-se, logo na portaria do clube, ao ritual de pendurar no pescoço os famigerados colares de flores e voltavam pra casa cedo, não sem antes namorar no portão ou nos apertados fusquinhas, o carro popular da época.

Dona Marinez se lembrou, de repente, de quando o filho Adhemar, o mais velho, foi pela primeira vez ao baile. O ano era mil novecentos e oitenta e alguma coisa. Naquela noite, o baile foi interrompido pra que o vocalista do grupo que se apresentava anunciasse em primeira mão que Ayrton Senna acabara de conquistar o título mundial de Fórmula 1. O Adhemar, tão feliz que ficou, tomou algumas cervejas além da conta (tomar porre de Cuba Libre, a essas alturas, já era visto como excentricidade) e pulou na piscina do clube com roupa e tudo, os óculos dançando dois metros abaixo da superfície, como náufragos afogados naquela noite de delírio. Os anos passariam e Ayrton Senna conquistaria, ainda, mais dois títulos. Morreria em 1994, numa manhã chuvosa de domingo, enquanto o Adhemar quebrava a cabeça no vestibular prá faculdade de Direito.

Adalberto, o filho mais novo. Esse nem dera trabalho, lembrou dona Marinez. Foi ao baile do Havaí pela primeira vez aos 16 anos, já de mãos dadas com a Michelle, a namoradinha com quem se casaria oito anos depois. Não que não tivesse tirado, de dona Marinez, algumas boas noites de sono.

Andréa, a filha do meio, sempre se recusou a pôr os pés naquela festa. Baile do Havaí, sempre fora, para ela, uma festa da burguesia. Àquela altura, no final dos anos 1980, o termo 'tribo' já tinha a conotação que tem hoje, sendo usado pra denominar os diversos gostos estéticos, musicais, etílicos, etc. dos adolescentes. E as tribos já não se misturavam como na primeira vez que dona Marinez foi ao Baile do Havaí. Para Andréa, o baile era, mesmo, um motivo a mais pra encontrar os amigos e pôr a conversa em dia, entre uma garrafa e outra de vinho, em algum canto bem longe do clube.

Dona Marinez se perdeu naquelas lembranças todas enquanto assistia à queima de fogos. Entre a primeira noite em que enroscara no pescoço o famigerado colar de flores e aquele momento, foram trinta e poucos anos e um sem número de alegrias, expectativas, tensões e significados. Naquela noite, no entanto, os fogos eram apenas fogos.

(Texto dedicado a d. Eunice)

3 comentários:

lulooker disse...

Ahh, não tinhas ainda postado aqui este texto? Gosto bem dele...
Beijo

Lu

Anônimo disse...

adorei, lindo, lindo, filho!!
Ass. mãe!

Anônimo disse...

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