terça-feira, 6 de novembro de 2007

Mancha corporativa

Pequena insusão pelo mundo da ficção. A mancha é baseada em fatos reais. Os outros fatos não possuem conexão com a realidade. Pelo menos com a minha. Hope you, one point seven readers, enjoy the experience...

Ela estava alí, enorme. Tão apavorado que ficou, Reginaldo nem se deu ao trabalho de tentar descobrir se ela foi aparecendo aos poucos, sem que ele se desse conta, ou se tinha simplesmente brotado alí de repente, como uma daquelas ilhotas que volta e meia surgem do nada no meio do pacífico Pacífico, quando um vulcão entra em erupção nas profundezas.

O fato é que ela estava lá. Intrépida. Impávida. Impassível. Desprezíveis nove milímetros de diâmetro, uma insignificância. Mas naquele ponto, no alto do penhasco onde as maçãs do rosto fazem uma curva em direção à cavidade ocular, a mancha vermelho escura estava numa localização privilegiada o suficiente pra causar uma enorme dose de preocupação.

E justamente naquela manhã prá qual estava marcada a temida reunião mensal de diretoria. Sim, temida. Afinal, reunião de diretoria não era uma reunião qualquer. Era dia de jogo decisivo. Era ali que os manda-chuvas decidiam o futuro de nobres e plebeus, tomavam as decisões de vida e de morte. Isso era lá dia prá desgraçada da mancha aparecer? E logo daquele tamanho, com colossais nove milímetros de diâmetro?

O pobre do Reginaldo, meio atônito, suava diante do espelho. Pensava nos meses que havia empenhando estudando cada detalhe da concorrência, levantando os pontos fortes, as áreas de atuação, visitando pontos de venda. Varara noites elaborando relatórios. Descobrira que a principal concorrente estava à beira da falência. E a reunião de diretoria seria o momento exato pra revelar essa situação. Os diretores, boquiabertos, se impressionariam. Perguntariam. Seria a consagração. O jogo do título, com o estádio lotado, a torcida a favor e o adversário fragilizado. E a maldita mancha estava lá, pra estragar aquele momento.

Num instante, os pensamentos voltaram ao banheiro do apartamento. Passaram, então, a passear por comerciais de TV. Reginaldo revirava a cabeça tentando relacionar todas as propagandas de produtos anti-manchas de que se lembrava. "Caiu, bateu, coçou? Tem de ser coçol!"... "Passa Vodol que passa!"... "Novo Vanish Poder O2. Tira mancha sem estragar as suas roupas..." Bah! Aquilo não era hora pra devaneios.

Não havia tempo a perder, o momento era de decisões drásticas. Meteu no rosto uns óculos escuros enormes e pulou pra dentro do elevador, ainda com a gravata nas mãos. Num instante, estaria na empresa, sentando-se na ponta oposta à do chefe, na enorme mesa de madeira clara em torno da qual perfilavam-se todos os demais diretores.

Os nove milímetros de diâmetro da mancha, felizmente, eram pequenos o suficiente pra que o Reginaldo alternasse quase uma dezena de gestos intelectualóides - lembrara-se da 'cara de conteúdo, o mote de uma velha campanha de propagandas do Estadão - que, de alguma maneira, disfarçavam a catástrofe. Tomado pela pavor, ficou alí, esforçando-se pra demonstrar interesse nas longas exposições dos colegas. Saiu calado. O relatório teria de ficar prá próxima, fosse quando fosse.

Desanimado pela performance pífia, levantou se, a mão esquerda espalmada sobre o lado esquerdo do rosto, o da mancha, num gesto que combinava bem com aquele momento de fiasco. Mário Henrique, o diretor financeiro, que pouco se manifestara durante a reunião, chamou-lhe com um gesto, como se quisesse lhe confidenciar algo. "Rapaz, notou como o chefe tá quietão? Pois tudo o que disseram aqui hoje não vale nada, mermão. Nadinha. Ontem à noite a PF baixou aqui e descobriu uma porrada de documento sujo na contabilidade. Levaram tudo prá sede. Só não divulgaram ainda porque não conseguiram uma prova mais firme. Se essa história estourar, todo mundo vai ficar marcado. Isso aqui vai virar um caldeirão..." As mãos, aquela altura, vagavam incertas, ora remechendo os cabelos, descrevendo, com os dedos, pequenos, cachos, ora metendo-se nos bolsos, a procura de um objeto qualquer. Baixara a guarda. Afinal, o que era a tal da mancha?

2 comentários:

lulooker disse...

Afinal, o que era a mancha???
Bj
Lu

Danilo Vivan disse...

A mancha fica por sua conta, Lu.
Crie um fórum de discussão do tipo: "O que o autor DV quis dizer com a mancha?" ou faça uma monografia a respeito, use a semiótica, sei lá.

Bjão

DV